domingo, 10 de fevereiro de 2013

A tabula rasa da história

Escrito por Leonardo Bruno  
Artigos - Globalismo


eucccpO secularismo quer muito mais do que destruir o cristianismo na civilização ocidental. Quer implantar um regime totalitário pagão, restabelecendo todas as perversões do mundo antigo, que a própria Cristandade fez questão de abolir.
Na atual mentalidade ocidental há uma espécie de tabula rasa da memória, no que diz respeito a várias situações históricas, incluindo aí as próprias origens. Um exemplo particular desta omissão é a Idade Média. Quase toda uma divulgação em escolas, mídia e universidades, com algumas exceções honrosas, retrata uma caricatura da Igreja medieval e da sociedade cristã, além do surrado rótulo da “Idade das Trevas”. O Velho Continente teria sido dominado por mil anos de obscurantismo. Só depois do Renascimento e do Iluminismo é que surgiu a razão, o progresso e a evolução da Europa, tal como conhecemos. Naturalmente, tal explanação é uma falsificação deliberada da história, para dizer o mínimo. Os secularistas, para justificarem seus intentos, precisam mentir sobre o passado. Como nunca contribuíram com nada de significativo para a civilização, a melhor maneira de impor seus propósitos ideológicos é evitar comparações. O passado denuncia os males do presente.

Curioso é pensar que a civilização greco-romana seja sempre elevada como espantalho contra o mundo medieval. A falsificação não se limita à Idade Média, mas a própria noção do mundo antigo. Há uma lenda de que os homens de Roma e Grécia seriam criaturas racionalistas, cientificistas e esclarecidas, em comparação aos cristãos medievais, fanáticos, crédulos e extremistas. A verdade é que o homem do mundo antigo era bem mais supersticioso do que o homem medieval. A “Cidade Antiga”, na definição de Fustel de Coulanges, não conseguia separar a religião de cada elemento da vida pública e privada. Na verdade, o homem antigo não conseguia ver mais além dos aspectos cívicos da cidade e da família. Não via o estrangeiro ou o forasteiro como parte da espécie humana ou como um próximo a ser respeitado. A religião da cidade modelava cada detalhe da vida do homem antigo e o fechava num círculo estreito e pequeno.

Séculos se passaram até que os romanos tratassem os povos dominados como iguais. A religião civil e doméstica não o permitia. A caridade e a hospitalidade, expressões cabais do amor cristão, eram desprezadas pelos antigos. Não é por acaso que a idolatria religiosa chegava ao ponto de adorar um imperador como deus. Quem faz a dissociação radical entre o temporal e o espiritual, entre o civil e o religioso, é justamente o cristianismo medieval. O direito romano, tal como é conhecido hoje, não provém da jurisprudência romana, cheia de inclinações religiosas que inviabilizavam sua praticidade, porém, do direito imperial bizantino, com o Digesto e as Institutas do Imperador Justiniano.

Presumir que o mundo antigo seja apenas Sócrates, Platão e Aristóteles é simplesmente desconhecer a mentalidade da época. Esses filósofos foram bastante impopulares, justamente por contestarem vários enunciados religiosos e míticos caros ao mundo antigo. Quem de fato deu o devido crédito a eles foram os cristãos do fim da Antiguidade e início da Idade Média. Dá para compreender por que estes pensadores foram tão cultivados no mundo medieval. Uma boa parte da cosmovisão filosófica grega platônica e aristotélica corroborava com o monoteísmo cristão, ainda que possuísse o vício do naturalismo. O homem medieval não rejeitava a filosofia pagã. Achava-se o seu continuador, um herdeiro das tradições filosóficas e jurídicas de Roma e de Grécia, embora rejeitasse os elementos mitológicos e as superstições do passado. Rejeitava a estreiteza mental da religião antiga, para pregar uma fé universal, na qual todos os seres humanos eram irmãos, filhos de um mesmo Deus. O cristianismo acrescentava à filosofia grega uma perspectiva particular da transcendência e do sobrenatural, estranha ao mundo antigo clássico, e que mudou radicalmente a noção da natureza. Ela é dessacralizada. O mundo não é como descrito pelos animistas da religião antiga, nem é algo próxima do que propõe o panteísmo. Mas é algo criado, como o homem, algo distinto do Criador.

Tal cosmovisão também muda radicalmente a política. A separação do poder temporal e do poder espiritual faz da autoridade secular um elemento humanizado, destoando assim da divinização comum dada a ela no mundo antigo. O príncipe pode ser ungido pela Igreja. Mas ele obedece a princípios, diretrizes e valores perenes, em favor da sociedade. O poder é um legado de Deus. Contudo, quando se exerce esse poder, essa “potestas”, o príncipe está sujeito a valores transcendentes ao quais deve obedecer, em favor da comunidade e do bem comum. O poder espiritual é “auctoritas”, autoridade moral, referência para a sociedade e a cultura intelectual no âmbito dos princípios. A Igreja é a figura institucional dos princípios religiosos. Ela abarcava, de fato, a unidade moral da Europa, dentro das distinções políticas e fragmentações do mundo medieval. Essa distinção é que fez do poder político algo que pode ser contestado ou combatido, em nome de valores transcendentes como a justiça e a lei natural. A individualização do ser humano na perspectiva cristã permitia esse caminho. Não era produto da cidade ou da coletividade, mas a imagem e semelhança de Deus, um ser independente das suas origens sociais.

O homem grego e romano obedecia cegamente a autoridade pública, pois esta era, ao mesmo tempo, religiosa. Sócrates tomou a cicuta por querer ser um bom cidadão ateniense até na morte. Não queria desobedecer às leis da cidade. Já o homem medieval, ao conceber valores morais transcendentes, era um cidadão do mundo. Estava livre das amarras da cidade ou do feudo, ao qual só era leal por uma questão de convivência e sentido de ordem social. E se achava no direito de se rebelar contra o governante, quando este não agia conforme os valores cristãos, mas tão somente em causa própria. O camponês medieval poderia viver na servidão. Todavia, se o nobre abusasse de suas prerrogativas, o servo se rebelava. O mesmo se aplicava aos súditos do rei. As teorias sobre a rebelião contra o governante injusto são genuinamente medievais. O regicídio, idéia desenvolvida pelo jesuíta espanhol Juan de Mariana, em pleno século XVI, tem sólidas referências no mundo medieval.

A fragmentação da sociedade medieval fundou uma civilização embasada na divisão dos poderes e na sua constitucionalização. O rei não era uma autoridade absoluta. Prestava contas à Igreja, às cortes dos nobres e aos súditos; enfim, vivia num amálgama de relações de lealdades e pactos que viabilizava a governabilidade do reino. Cada estamento social era uma esfera de poder, que limitava a outra. Cada súdito tinha um papel social determinado pelas funções herdadas pela origem. Isso não impedia a mobilidade social. Na verdade, em uma sociedade fragmentada, as famílias, os estamentos sociais, as castas e os ofícios eram formas institucionalizadas de proteção mútua de seus associados.

Embora essas instituições fossem precárias, conceitos como liberdade civil, parlamentos, leis limitadoras dos poderes monárquicos surgem a partir da gênese do pensamento e da dinâmica política do mundo medieval. Essa limitação de poder é retratada, inclusive, nas esferas de intervenção da Igreja e da monarquia, em particular, nas disputas de poder entre o Sacro Império e a Santa Sé. Ao contrário dos lugares-comuns, a sociedade medieval não era teocrática. Os bispos e papas tinham limitações de poder na esfera política. E os príncipes costumavam não intervir na esfera religiosa. A esfera secular e a religiosa coexistiam frontalmente, ora brigando entre si, ora se conciliando.

O Império Romano como idéia no Ocidente sobreviveu mesmo após sua derrocada, por beneplácito da Igreja. Na verdade, a missão dela foi preservar o que foi perdido no passado. A criação do Sacro Império Romano Germânico era uma forma de restaurar a unidade europeia imperial. Tarefa, portanto, inglória, já que outras monarquias europeias também queriam restabelecer a perspectiva do Império. A expansão marítima portuguesa e espanhola é produto dessa coesão entre Império e Igreja, entre a identidade romana jamais extinta na consciência da Europa.

Na verdade, a Igreja guardou o legado imperial na memória. Cultivou a literatura latina e a filosofia grega, preservando-a do perecimento. Criou escolas, hospitais, universidades e fundou o sistema educacional do Ocidente. Ela foi muito mais além. Criou uma nova sociedade sob os escombros da velha. Forjou o continente chamado Europa. Ou melhor, seus valores fundaram uma nova ordem mundial, um novo ciclo histórico.
Apesar da influência decisiva do cristianismo na consciência ocidental, os arautos da modernidade querem apagar o passado, impor uma tabula rasa sobre ele, no pior sentido do termo. A União Européia fez questão de suprimir qualquer menção às raízes cristãs do Velho Continente. No documento da Constituição da Europa, com mais de 70 mil páginas, não há uma única referência sequer ao fato óbvio de que a Cristandade é o elemento mais genuíno do mundo europeu. E pior: a União Européia imprimiu várias agendas escolares na quais se suprimia qualquer menção ou data de comemoração cristã. Só as comemorações islâmicas e judaicas foram preservadas. Tamanho ódio secularista se coaduna perfeitamente com a engenharia ideológica da socialdemocracia que hoje domina a Europa. Na verdade, a própria idéia da “constituição europeia” é uma antítese da Cristandade, pois idolatra um poder estatal acima das autonomias, das identidades, das liberdades civis e dos valores transcendentes da justiça e do direito. Na prática é uma constituição que despreza totalmente as tradições políticas das nações envolvidas. Imposta de cima para baixo, despreza as nacionalidades e as independências nacionais e ignora solenemente as raízes morais, éticas e religiosas do continente. A Constituição e a União Européia são as modernas perversões oferecidas pelo secularismo e pelo socialismo.

Não é de se admirar que o secularismo levará a Europa, de novo, ao totalitarismo. O desprezo pela fé cristã visa restaurar um novo paganismo político, que faz do indivíduo mera engrenagem do Estado onipotente e auto-sacralizado. A União Européia é um monstro cheio de agendas políticas destrutivas para a liberdade e o indivíduo. É uma Europa socialista, tanto no sentido institucional, como no cultural. A legalização irrestrita do aborto, da eutanásia, do “casamento homossexual” e a expansão dos controles estatais sobre detalhes comezinhos da vida do cidadão europeu visam destruir os elementos intermediários da sociedade que impõem limitações ao poder estatal: a família, as instituições privadas, a Igreja, a religião e a própria nação.
O Estado europeu visa remodelar comportamentos, pensamentos e até mesmo a memória histórica. A descristianização e secularização da Europa são acompanhadas da expansão e inchaço do Estado e da burocracia. Burocracia esta que apaga a memória histórica da Europa, para que o cidadão comum não se recorde nem mais de si mesmo. A Constituição Europeia é totalitária, agnóstica e anticristã. A religião da Europa estatizante é o eco-fascismo, o New Age e outras formas deturpadas de crenças. É o gnosticismo e panteísmo mais rasteiro junto a uma religião civil com ranços materialistas.

Contudo, a perversidade em falsificar a realidade histórica não se limita à Europa contemporânea. Já dominou uma boa parte do Ocidente, com a mentira e a mistificação elevadas a versões histórico-científicas. Qualquer professor semiletrado de história de uma universidade pública ou escola de ensino médio qualquer, repete a falácia boba de uma Cristandade malvada contra um mundo secular elevado a paraíso terreno. Raros são os esclarecidos, que não pregam tais falsidades. O ataque ao cristianismo adquiriu um caráter mundial.

O secularismo quer muito mais do que destruir o cristianismo na civilização ocidental. Quer implantar um regime totalitário pagão, restabelecendo todas as perversões do mundo antigo, que a própria Cristandade fez questão de abolir. Relativizar a sacralidade da vida humana e da família para absolutizar a vontade onipotente dos engenheiros sociais e burocratas, endossados por uma visão pseudocientífica da sociedade: eis o que esperemos do novo mundo pagão que ressurge, como um novo César divinizado à frente. A União Européia é apenas um exemplo regional de uma nova União Soviética. Um modelo a ser imitado em escala mundial. O “admirável mundo novo” está mais próximo do que se imagina...


Fonte: midia sem mascara

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