quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Laicidade do Estado - parte l

Uma interpretação a partir do preâmbulo constitucional

Antonio Carlos da Rosa Silva Junior


Com o fim de analisarmos alguns aspectos do Estado laico, tema desse breve artigo, abordaremos a natureza jurídica do dispositivo preambular, as menções (ou não) do teísmo e laicidade estatal, sejam nas constituições do Brasil ou dos Estados-membros, sejam no plano internacional, bem como a liberdade religiosa e a finalidade e importância da citação de Deus nas Constituições.


1. Natureza jurídica dos preâmbulos constitucionais


O Min. Carlos Velloso, relator da ADI nº 2076-5/AC (julgada em 15/08/2002), citando Jorge Miranda, anota as três correntes doutrinárias a respeito da relevância jurídica do preâmbulo:


O preâmbulo, segundo Jorge Miranda, "proclamação mais ou menos solene, mais ou menos significante, anteposta ao articulado constitucional não é componente necessário de qualquer Constituição, mas tão somente um elemento natural de Constituições feitas em momentos de ruptura histórica ou de grande transformação político-social." (Jorge Miranda, "Estudos sobre a Constituição", pág. 17). Teria o preâmbulo relevância jurídica? Jorge Miranda registra três posições da doutrina a respeito do tema: "a tese da irrelevância jurídica; a tese da plena eficácia, colocando o preâmbulo em pé de igualdade com quaisquer disposições constitucionais; entre as duas, a tese da relevância jurídica indireta, não confundindo preâmbulo e preceitos normativos. Para quem defende a primeira tese, o preâmbulo não se situa no domínio do Direito, situa-se no domínio da política; para quem defende a segunda, ele acaba por ser também um conjunto de normas jurídicas, conquanto sob forma não articulada; para quem defende a terceira, o preâmbulo participa das características jurídicas da Constituição, mas resta saber que papel lhe cabe no seu sistema global." E acrescenta o mestre da Universidade de Lisboa que essa terceira maneira de ver é a que tem o seu apoio, mas reconhece que o preâmbulo "não cria direitos ou deveres" e que "não há inconstitucionalidade por violação do preâmbulo." (Jorge Miranda, ob. cit., págs. 22 e 24). (grifos nossos)


No mesmo passo, expressando a dissensão doutrinária, asseverou o Ministro Celso de Mello na MCMS nº 24645/DF:


Como se sabe, há aqueles que vislumbram, no preâmbulo das Constituições, valor normativo e força cogente, ao lado dos que apenas reconhecem, no texto preambular, o caráter de simples proclamação, que, embora revestida de significado doutrinário e impregnada de índole político-ideológica, apresenta-se, no entanto, destituída de normatividade e cogência, configurando, em função dos elementos que compõem o seu conteúdo, mero vetor interpretativo do que se acha inscrito no "corpus" da Lei Fundamental.


O Supremo Tribunal Federal entendeu, na aludida ADI, que o dispositivo enfocado carece de força normativa e relevância jurídica, não sendo norma de repetição obrigatória nas Constituições dos Estados-membros.[1] Entretanto, o próprio STF, bem como o Superior Tribunal de Justiça, em alguns julgados, já se posicionaram no sentido de que o preâmbulo deve ser tomado em consideração quando da interpretação do texto constitucional.[2]


A reparação ou compensação dos fatores de desigualdade factual com medidas de superioridade jurídica constitui política de ação afirmativa que se inscreve nos quadros da sociedade fraterna que se lê desde o preâmbulo da Constituição de 1988. (STF, RMS nº 26071/DF)


Salutar, agora, uma nova releitura do Preâmbulo da Constituição, lapidar escritura lavrada pelos constituintes originários, capaz de mostrar que a Emenda Constitucional nº 12/96 - e não a EC nº 21/99 - é a verdadeira raiz da inconstitucionalidade da CPMF que hoje é cobrada no país, na esteira de esdrúxula prorrogação. 7 - À luz dos princípios explicitados no Preâmbulo, o intérprete do art. 154, inc. I, da Constituição chegará facilmente à visão do grau de incompatibilidade que existe entre o art. 74 do ADCT, introduzido pela EC nº 12/96, e a Constituição da República como um todo: o povo, majoritariamente constituído de cidadãos-contribuintes-consumidores, foi a toda evidência ignorado. (STF, RE nº 370828/SP)


A reparação ou compensação dos fatores de desigualdade factual com medidas de superioridade jurídica constitui política de ação afirmativa que se inscreve nos quadros da sociedade fraterna que se lê desde o preâmbulo da Constituição de 1988. (STJ, RMS nº 26089/PR)


Tutela antecipada de pagamento de aluguel de moradores em área não fiscalizada pelo poder público que perderam as suas casas e obtiveram provimento de urgência, consagrando o direito social de moradia, consectário da tutela da dignidade da pessoa humana, fundamento da República e que cumpre os desígnios do preâmbulo constitucional, na construção de uma sociedade brasileira, justa e solidária. (STJ, MC nº 10613/RJ)


e


Um país cujo preâmbulo constitucional promete a disseminação das desigualdades e a proteção à dignidade humana, alçadas ao mesmo patamar da defesa da Federação e da República, não pode relegar o direito à educação das crianças a um plano diverso daquele que o coloca, como uma das mais belas e justas garantias constitucionais. (STJ, REsp nº 575280/SP)


No mesmo sentido, sobre a eficácia interpretativa do preâmbulo constitucional, alguns doutos já se posicionaram:


[Sérgio Luiz Souza Araújo, citado por Cândido Furtado Maia Neto, explica que] O preâmbulo da Constituição brasileira de 1988, conforme já salientamos, representa a fórmula política da Constituição. Suas disposições não são normas. São decisões políticas. Entretanto, estas decisões políticas condicionam as disposições normativas do contexto constitucional, e neste sentido é imperativo que todo e qualquer dispositivo da Constituição deverá ser interpretado à luz daquelas decisões; historicamente, os preâmbulos trazem em seu cerne a luta pela evolução dos ideais de uma sociedade política, o sonho do Estado perfeito. Os preâmbulos das Constituições espelham sua época, retratam com fidelidade das posturas ideológicas, traduzidas em programas, promessas, afirmações de princípios. Constituem, assim, uma orientação para a leitura de valores, ideais e expectativas de uma época, de uma sociedade em dado momento histórico. Há uma íntima relação entre as normas de conteúdo programático, os princípios fundamentais e os valores que presidem a Constituição. Deste modo impõe-se a necessidade política de avançar na realização dos objetivos gerais impostos pelo preâmbulo. No exame de qualquer Constituição há que se levar em conta a sua fórmula política (a expressão ideológica), juridicamente organizada e adotada. A hermenêutica constitucional há de ser harmônica com os pressupostos ideológicos encerrados no preâmbulo. As normas constitucionais no constitucionalismo contemporâneo têm uma função claramente transformadora da sociedade. O preâmbulo orienta essa função e aponta objetivos, explícitos ou implícitos, profundos e amplos numa tarefa incessante que desvela a complexidade da sociedade atual. Os preâmbulos orientam a produção legislativa e a função do juiz. O preâmbulo é parte integrante da Constituição e como tal participa de seus efeitos. Procede do Poder constituinte como valor formal. Do ponto de vista material direciona os conteúdos das disposições ou preceitos. (NETO)


Como última observação preliminar, é interessante assinalar que, no Brasil, somente agora, depois da elaboração da Constituição de 1988, é que se começou a dar importância ao Preâmbulo da Constituição, reconhecendo seu caráter de preceito jurídico e, portanto, a exigência jurídica de respeitá-lo e de tê-lo em conta na interpretação dos artigos da Constituição e no controle da constitucionalidade das leis e dos atos jurídicos. Na realidade, os Preâmbulos sempre foram vistos como simples fórmula retórica, desligada do corpo da Constituição e sem qualquer eficácia jurídica. Nas ocasiões de decretação autoritária de uma nova Constituição, o Preâmbulo foi utilizado como uma espécie de manifesto político, por meio do qual se procurou justificar a imposição de uma nova carta constitucional, tomando como pretexto o interesse do povo.


(...)


[Comentando sobre a Constituição de 1988, aduz:] No final da década de setenta, já não havia condições políticas para a manutenção daquele regime, pois grande parte da população que o apoiara no início já reconhecia que a alegação da necessidade de proteção da liberdade, dos direitos fundamentais e dos valores cristãos tinha sido enganosa.


(....)


Um dado final que tem grande importância é que, na obra de vários constitucionalistas brasileiros contemporâneos, assim como na jurisprudência, já é referido o Preâmbulo como norma constitucional, de eficácia jurídica plena e condicionante da interpretação e da aplicação das normas constitucionais e de todas as normas que integram o sistema jurídico brasileiro. (DALLARI)


É absolutamente tranqüilo na doutrina e na jurisprudência que a Constituição fez uma opção material clara pela centralidade da dignidade humana. Essa conclusão decorre de forma muito evidente da leitura do preâmbulo, dos primeiros artigos da Carta e do status de cláusula pétrea conferido a tais direitos. (BARCELLOS, 2008, pp. 159-160)


(...) o preâmbulo não é juridicamente irrelevante, uma vez que deve ser observado como elemento de interpretação e integração dos diversos artigos que lhe seguem. (...) por traçar diretrizes políticas, filosóficas e ideológicas da Constituição, será uma de suas linhas mestras interpretativas. (MORAES, 2008, pp.20-1)


[Paulo Dourado de Gusmão, citado por Luciano Silva, entende que,] tradicionalmente, as constituições têm uma parte introdutória: ‘preâmbulo’, estabelecedora das idéias políticas, jurídicas, econômicas e culturais, que deverão orientar o legislador ordinário em sua tarefa legiferante e inspirar o intérprete na apuração do sentido do sistema constitucional. O ‘preâmbulo’ encerra, assim, os pressupostos ideológicos da constituição. O ‘preâmbulo’, ou parte essencialmente política da constituição, pode ser considerado como a premissa fundamental da ordem jurídico-política do Estado. Essa parte consta de normas programáticas, de diretrizes, que deverão inspirar o legislador ordinário. É, assim, um programa a ser realizado pelas novas normas, ou pelas normas vigentes, através da interpretação. (SILVA)


Embora saibamos que o "preâmbulo" não é parte integrante da lei básica, tem a função de determinar os fins para os quais foi elaborada e, por eles, indicar a verdadeira interpretação dos pontos duvidosos. (...) Não tem caráter dispositivo, e, sim, enunciativo, apenas: não ordena; explica, orienta, esclarece. (Diário do CN (I) – constituinte Jorge Arbage)


e


Para Paulino Jacques, o preâmbulo não tem força normativa, mas vale como princípio informador da Constituição ("Curso de Direito Constitucional", Forense, 9ª ed., págs. 134 e segs.). Sérgio Luiz Souza Araújo, estudou o tema e concluiu que o preâmbulo, "em sua significação profunda, revela uma clara manifestação axiológica que se nutre das aspirações da sociedade", motivo por que "todo o texto constitucional há que ser interpretado em íntima conexão com as ideologias perfiladas no Preâmbulo." ("O Preâmbulo da Constituição brasileira de 1988 e sua ideologia", Rev. de Inf. Legislativa, 143/5). (STF, ADI nº 2076-5/AC)


Dessa forma, observamos que, dentre as três correntes doutrinárias, em que pese as manifestações em sentido contrário, merece respaldo apenas a que entende pela relevância jurídica do preâmbulo, especialmente como subsídio de interpretação do texto constitucional – sobretudo quando de sua análise sistemática –, e, em assim sendo, de todo o ordenamento jurídico. Do contrário, tornar-se-ia "letra morta" a disposição preambular – e sabemos que a lei não contém palavras inúteis.


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2. Laicidade estatal e "proteção de Deus"


Fixado nosso posicionamento inicial, qual seja, o de entender a disposição preambular como dotada de força normativa, notadamente quanto à sua utilização como critério de interpretação jurídica, perguntamos: a invocação a Deus ofende a liberdade de consciência e crença ou viola a laicidade do Estado?


Quanto ao primeiro ponto, entendemos que, mesmo com a invocação a Deus, se mantém a liberdade de consciência e crença, já que são possíveis todas as manifestações religiosas, inclusive com proteção dos locais de culto e suas liturgias (CRFB/88, art. 5º, VI). Assim, não se retira a possibilidade de existência, dentro do território nacional, de crenças politeístas (que crêem em mais de um deus), ateístas (que não crêem em Deus) e agnósticas (que não acreditam em nada além do perceptível experimentalmente), por exemplo.


Quanto ao segundo ponto, temos a laicidade estatal disciplinada no art. 19, I, da Constituição da República e, mais uma vez, não percebemos qualquer confronto textual. Estado laico é aquele que não adota uma religião oficial (Estado não confessional – "doutrina de dissociação" (MARÇAL, 2001, p. 104) –, ao contrário do disposto na Constituição do Império de 1824), trata indistintamente partidários de todas as religiões e veda interferências diretas destas na condução da res publicae (nesse sentido, ver SANTOS JUNIOR).


Importante considerar, outrossim, que a proibição de interferências não se confunde com a vedação de influências, já que as decisões políticas, principalmente sobre alguns temas, como a liberação de pesquisas com células-tronco ou a legalização do aborto, invariavelmente, são tomadas, também, considerando as manifestações dos vários grupos religiosos. Assim, embora seja proibido ao Estado (lato sensu) estabelecer cultos religiosos, subvencioná-los ou embaraçar-lhes o funcionamento, tal não implica na proibição de que este creia em Deus e declare Sua proteção.


Ademais, considerada a votação na Comissão de Sistematização[3], cumpre-nos enfatizar que apenas um dos constituintes votou pela não inclusão da "proteção de Deus" no preâmbulo constitucional. (MONTEMURRO, 2006; NÓBREGA, 1999)


Além disso, há que se observar, repita-se, que a norma não traz palavras inúteis. Não vislumbramos que a "proteção de Deus" gere direitos ou deveres para Ele. Contudo, a origem remota de toda e qualquer norma – na moral, religião ou economia, por exemplo – não faz com que a mesma perca juridicidade: toda norma jurídica, como o preâmbulo constitucional o é, se mantém jurídica independentemente de sua origem.


No mesmo passo, ante o princípio da unidade da Constituição, inviabilizada está a declaração de inconstitucionalidade de norma constitucional originária (ou seja, daquela que não foi inserida no texto constitucional por meio de Emenda, própria do Poder Constituinte Reformador). E, em assim sendo, a tese por nós abraçada também encontra respaldo nos princípios informadores da interpretação constitucional.


Desta feita, nosso Estado é laico, mas não ateu. Além disso, apresenta-se monoteísta, já que o vocábulo "Deus", grafado com inicial maiúscula, indica a crença na existência de um único Deus verdadeiro e supremo – em oposição a entidades intituladas "deus" pelos homens, a exemplo das mitológicas gregas, que subentendem a referência a um entre vários deuses.


Nesse ponto, importante destacar a distinção entre deístas e teístas feita por Francis Collins, diretor do "Projeto GENOMA" e que, pesquisando sobre o DNA, se converteu do ateísmo para o teísmo-cristão:


[tratando sobre ser possível justificar a presença da "Lei Moral", que não pode ser explicada "como uma ferramenta cultural ou um produto indireto da evolução", mas sim porque Deus se mostra, através dela, "dentro de nós, como uma influência ou um comando tentando fazer com que nos comportemos de determinados modos", diz:] Ao deparar com esse argumento aos 26 anos, fiquei aturdido com sua lógica. Aqui, oculta em meu coração, tão familiar quanto qualquer coisa na experiência do dia-a-dia, mas agora surgindo na forma de um princípio esclarecedor, essa Lei Moral brilhava com sua luz branca e forte nos recônditos de meu ateísmo infantil, e exigia uma séria consideração sobre a sua origem. Estaria Deus olhando de novo para mim?


E, se fosse assim, que tipo de Deus seria? Seria um Deus pela visão deísta, que inventou a Física e a Matemática, começou o universo em movimento há cerca de 14 bilhões de anos e, em seguida, perambulou para longe, a fim de lidar com outros assuntos de maior importância, como Einstein pensava? Não, esse Deus, se eu pudesse percebê-lo em sua totalidade, deveria ser um Deus do ponto de vista dos teístas, um Deus que desejasse algum tipo de relacionamento com essas criaturas especiais denominadas seres humanos e, portanto, tivesse incutido esse seu vislumbre especial em cada um de nós. Poderia ser o Deus de Abraão, mas sem dúvida não seria o Deus de Einstein. (COLLINS, 2007, pp. 36-8)


Assim, há que se reconhecer o teísmo estatal, notadamente pela declaração ou invocação da "proteção de Deus", o que será diferenciado a seguir. Isso, é necessário repetir, não configura a adoção de uma religião oficial, mas sim a "aspiração ética de re-ligação do homem ao princípio criador e organizador do Universo no qual ele acredita", (LELLIS FILHO) a fé "em uma inteligência suprema, causa primeira de todas as coisas". (BARBOSA)


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3. Deus e laicidade nas Constituições do Brasil: historicidade


A primeira Constituição do Brasil, ainda Império, confeccionada em razão da Independência (1822), data de 25 de março de 1824 e invocava a "Santíssima Trindade", pois o Estado mantinha a religião Católica Apostólica Romana como oficial, o que já ocorria no Brasil Colônia. Tratava-se, portanto, de um Estado confessional, jurando o Imperador em mantê-lo (art. 103). Apesar disso, eram permitidas manifestações de outras religiões, mas somente em locais sem forma exterior de templo (art. 5) e desde que fosse respeitada a religião oficial do Estado e não ofendesse a moral pública (art. 179, V), também se admitindo a naturalização independentemente da religião professada (art. 6, V). Contudo, os religiosos não podiam votar nas Assembléias Paroquiais (art. 92, IV) e só se podia eleger Deputado quem seguisse a religião do Estado (art. 95, III). Assim, "A rigor, no Império, não havia liberdade religiosa em toda a sua extensão." (ALTAFIN, 2007, p. 13)


Com a proclamação da República, em 1889, fez-se necessária a edição de uma nova carta política. Dessa vez, rompendo a relação Estado-Igreja, a Constituição de 1891 traz um Estado laico e ateu, sem religião oficial ou menção de "Deus" em seu texto. Na verdade, "Antes mesmo da Constituição de 1891, o Governo Provisório separou a Igreja do Estado, pelo Decreto 119A, de 7 de janeiro de 1890." (ALTAFIN, 2007, p. 14) A liberdade religiosa, aqui, toma novos contornos, já que os cultos podiam ser livres e públicos (art. 72, § 3º), restando impossível a privação de direitos por motivos de convicção religiosa, sendo que a escusa de consciência, pura e simples, acarretava a perda dos direitos políticos (art. 72, §§ 28 e 29). Ainda, era vedado ao Estado o estabelecimento, subvencionamento e embaraço do exercício dos cultos religiosos (art. 11, 2º), e nenhuma igreja poderia ter relações de dependência ou aliança com o governo (art. 72, § 7º). Apenas os religiosos que se submetessem a regras de renúncia da liberdade individual não podiam alistar-se eleitores, tornando-se, também, inelegíveis (art. 70, § 1º, 4º, e § 2º).


Por sua vez, a Constituição de 1934, surgida a partir da adoção de uma democracia social proposta pela Revolução de 1930 (em contraposição ao liberalismo), expõe o teísmo estatal ao reconhecer que Deus é digno de confiança. Mantêm-se a laicidade (art. 17, II) e a liberdade religiosa (art. 113, I), sendo aceita a colaboração Estado-Igreja em prol do interesse coletivo (art. 17, III). Era expressamente permitida a assistência religiosa nas penitenciárias e outros estabelecimentos oficiais, sem ônus para os cofres públicos e constrangimento ou coação dos assistidos (art. 113, 6). O ensino religioso nas escolas é instituído, com freqüência facultativa dos alunos e obedecida a convicção pessoal (art. 153), o que seria mantido nas Constituições posteriores.


A Constituição de 1937, outorgada por Getúlio Vargas, impõe ao país o regime do Estado Novo, com inspirações fascistas. O nome de Deus é banido da Carta Magna e conserva-se a liberdade religiosa. As manifestações podiam ser públicas (art. 122, 4º), era proibido ao Estado o estabelecimento, embaraço ou financiamento dos cultos religiosos (art. 32, b), e a escusa de consciência implicava a perda dos direitos políticos (art. 119, b). Foi a primeira das Constituições a prever, expressamente, o repouso dos operários nos feriados religiosos (art. 137, d).


Restaurada a democracia liberal, em 1945, e com a deposição de Getúlio Vargas e instalação da Assembléia Constituinte, promulga-se a Constituição de 1946. Retorna-se ao teísmo estatal, sendo a proteção de Deus declarada na disposição preambular. Conservam-se a laicidade (art. 31, II), a colaboração em prol do interesse coletivo (art. 31, III) e a liberdade de consciência e crença (art. 141, § 7º). Ademais, é a primeira Carta a indicar a vedação do lançamento de impostos sobre os templos de qualquer culto (art. 31, V, b), além de impor mais um requisito para a perda dos direitos políticos por motivo de escusa de consciência, qual seja, a recusa no cumprimento de deveres alternativos (art. 141, § 8º).


A Constituição de 1967, editada após o Golpe Militar de 1964, apenas invoca a proteção de Deus, ao contrário da anterior, que a declarava. Preservam-se a liberdade religiosa (art. 150, §§ 1º e 5º), a laicidade e a possibilidade de colaboração (art. 9º, II). A escusa de consciência retoma os moldes do disposto na Constituição de 1937 (art. 144, II, b c/c art. 150, § 6º). Ademais, havia previsão no sentido de que a assistência religiosa poderia ser prestada nos estabelecimentos de internação coletiva, bem como nas forças armadas e auxiliares (art. 150, § 7º).


A Emenda Constitucional nº 1 de 1969, introduzida com o Ato Institucional nº 5, por sua vez, inova em relação à Constituição de 1967 somente em dois aspectos: proibição expressa de pronunciamento parlamentar (art. 30, par. único, b) e de propagandas (art. 153, § 8º) que importem em preconceito de religião.


Por fim, a Constituição de 1988 volta a declarar a proteção de Deus. Dispõe, em síntese, ser "inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias" (art. 5º, VI), mantendo-se a laicidade estatal e a possibilidade de colaboração de interesse público (art. 19, I).


Assim, as alterações preambulares, mormente as operadas nas Constituições de 1891 e 1937, demonstram que o teísmo insculpido é referente ao Estado, e não como valor da sociedade ou religiosidade do povo. Não se pode cogitar que, no intervalo de pouco mais de três anos (julho de 1934 a novembro de 1937), a sociedade brasileira tenha perdido sua confiança em Deus, retomada após quase nove anos (setembro de 1946). Dessa feita, apenas nestas duas Constituições (1891 e 1937) o Estado não se revela teísta.


Na primeira delas há que se considerar o importante momento de decretação da laicidade estatal (não adoção de uma religião oficial). O Estado, objetivando não dar azo a qualquer manutenção das interferências religiosas em suas decisões, resolveu não fazer qualquer menção a Deus em sua Lei Maior. Ademais, o Estado, à época, fascinado com as idéias positivistas e iluministas, abandonou o teísmo.


A Proclamação da República significou não só uma ruptura política, senão também um corte profundo no mundo dos valores e das idéias da época. Não se pode olvidar o fascínio das idéias positivistas e cujo pano de fundo era o ateísmo. Conseqüência inevitável desse estado de coisas foi a abolição do orago ao Ser Supremo, na primeira Carta Fundamental da República. (NÓBREGA, 1999, p. 21)


A segunda foi outorgada pelo então presidente Getúlio Vargas, buscando tecer um Estado nos moldes que reputava conveniente para o estabelecimento e manutenção do seu governo, inspirado por formulações antidemocráticas, totalitárias e ateístas. Segundo TEIXEIRA, dizem alguns, inclusive, que o próprio Getúlio era ateu.


Durante quase toda a República Velha, o Estado permaneceu sob o domínio político do grupo castilhista. Seu líder maior, Júlio de Castilhos, era seguidor ardoroso de Comte a quem chamava Mestre dos Mestres. E, sob o mando de Júlio de Castilhos, as idéias de Comte, concernentes à ditadura republicana, foram ajustadas à política local. Antônio Paim vê, no castilhismo, o núcleo antidemocrático das idéias políticas de Comte, transposto para uma realidade política.


Nesse ambiente de idéias antidemocráticas e ateístas, forjou-se o dirigente político, que do Rio Grande iria ser catapultado, no bojo de um movimento revolucionário, para primeira magistratura da Nação.


Destarte, fica mais fácil compreender o esquecimento da Majestade Divina na Carta de 1937". (NÓBREGA, 1999, p. 24)


Desta feita, claro nos parece que o abandono do teísmo estatal se deu, principalmente, em razão de ideais ateístas que influenciavam o pensamento reinante na época da elaboração das Constituições de 1891 e 1937.


Na de 1934, os Constituintes, "pondo a nossa confiança em Deus, assim declarando, afastaram o positivismo Comtiano e o agnosticismo, que até certo ponto influenciaram a feitura da lei fundamental da República brasileira de 1981 e que voltaram para tentar caracterizar a Carta ditatorial de 1937. (Diário da ANC – constituinte Salatiel Carvalho)

Fonte: site jus navigandi - uol

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